A RDB correu a maratona, mas não se cansou!
A necessidade milenar de contar histórias acompanha o Homem desde que este pela primeira vez ergueu os braços do chão e com o que então tinha à mão recalcou os episódios do seu quotidiano por entre as paredes que o abrigavam. É neste preciso momento que se dá início à mais improvável de todas as histórias.
Hoje, tal como ontem, a necessidade evoca o Homem e, na condição de criador, sucedem-se as histórias ao ritmo de uma agitação social que importuna o espírito e empurra a mente para as trincheiras da criação. Hoje, tal como ontem, participam no processo artístico os mesmos sujeitos de sempre. A dúvida e a inquietação, a justiça e a liberdade, o medo e a razão. E o Homem: berço nevrálgico de toda a crítica.
Desde a ruptura com as formas tradicionais da representação, ainda durante o Séc. XIX, que o Homem não conhece limites para o suporte à criação e para a interpretação da sua revolta. A década de 80 introduziu novos factores como a tecnologia digital, a princípio muito contestada embora hoje implicada em praticamente todos os domínios da representação. Desde então cada vez mais improváveis se tornaram, não as suas histórias, pois essas são as mesmas de sempre, mas antes o meio de as fazer chegar a um público por vezes demasiado distante e imbricado numa cultura orquestrada pelo progresso mercantil.
É neste contexto que sobem, até ao final do mês, aos palcos do Maria Matos Teatro Municipal alguns dos mais improváveis contadores de histórias nacionais e internacionais para marcarem presença num ciclo, ele, não menos improvável, um brinde à estética da representação.
De Nova Iorque chega-nos a companhia de teatro Nature Theatre of Oklahoma e que traz na sua bagagem a mais aplaudida obra de todos os tempos, “Romeu e Julieta” de Shakespeare. Mas desengane-se o leitor que espera uma versão clássica desta obra-prima. A peça, recolhida através de conversas telefónicas e tendo por base apenas os registos memográficos dos interlocutores, transforma-se num veículo para a transfiguração dos personagens em cada um de nós e, como não poderia deixar de ser, são carregados os pontos mais fracturantes da actual sopa social. Um grupo a manter debaixo de olho!
A partir de uma viagem de comboio entre Setúbal e Roma-Areeiro, “Departure” projecta, em três telas, o fluxo migratório diário com destino à metrópole. Durante o longo trajecto, onde a fragilidade da condição humana se esconde por trás da necessidade de sobrevivência, existe a possibilidade de sonhar com outras paisagens que não a da escravatura laboral. Emídio Buchinho, juntamente com Carlos Santos e João Silva, recolheram e trabalharam também os sons da própria viagem que acompanham a projecção.
Talvez a mais improvável de todas as histórias se encontre no Purgatório. Quem diria, exclamará o leitor e com alguma razão. A partir de um argumento recentemente escrito por Joris Lacoste, Martim Pedroso encena algumas das mais filosofais questões de todos os tempos. Quem somos e para onde vamos. Para mostrar que não existem respostas a estas questões, esta peça não tem final. O espectador é convidado a sair e sem antes ter oportunidade de aplaudir (ou não!). À saída cada espectador tem direito a um CD para desenvolver as suas próprias convicções. Bravo!
Em sprint final assistimos ainda à performance audio-visual do britânico Scanner, com quem trocamos algumas palavras. Intitulada “52 Spaces”, esta peça foi concebida a partir dos últimos 52 fotogramas do filme “L’éclisse” (”O eclipse”), de Michelangelo Antonioni por ocasião do seu 90º aniversário e mostra-nos, para quem não viu o filme, uma cidade fria, de rostos fugidios e sorrisos ausentes. A música deixa no entanto uma réstia de esperança…
Por Eduardo Rothe
Rua de Baixo