Carta de Manuel a Martim:
> Caro Martim e todas/os interessadas/os
> 
> Parabéns pela tua iniciativa: com tantas peças de
> merda quehá por aí que assim não se chamam, de
> certeza que uma que se chama assim podechegar a ter
> qualidades. E para além da brincadeira, espero que
> consigas o quepretendes: reflectir acerca de um tema
> mais complicado do que se pode achar,sem
> preconceitos.
> 
  Mas deixa que te diga: para que esta operação chegue
> a terrelevância (que, porém, não vai nunca ter:
> PORQUE A SOCIEDADE EM QUE VIVEMOS ÉESTA E NÃO OUTRA
> QUE GOSTAVÁMOS INVENTAR) seria importante pôr as
> questões deuma forma mais abrangente. Eu naõ tenho a
> paciência que me seria necessáriapara expor o que
> quero dizer, mas de uma maneira fragmentária direi:
> 
> Tens/temos a certeza de que ter um “estatuto” social
> sejaassim tão fecundo para um artista, e de que
> operar desde uma perspectivamarginal seja assim tão
> mau, e não uma forma paradoxalmente privilegiada
> decriar? (E para sermos marginais é preciso sê-lo
> mesmo, não basta adoptar umamarginalidade teórica!)
> 
  Porque só citas advogados médicos etc e tal como
> exemplos deprofissões socialmente relevantes e
> reconhecidas? Porque não falas emtrabalhadores
> comuns? Não penso que tenhas como o objectivo
> transformar a classe artística numa classe burguesa,
> até porque é bem melhor que fique quanto mais
> possível transversal às classes. Será então que o
> problema é maior, e é um problema sociale político
> do qual não se pode prescindir, e abaixo a patética
> imparcialidade?
> 
  Todos (nós) acreditamos que a cultura produz
> “riqueza”, masqual riqueza? Nesta sociedade? Não me
> parece. E de todas maneiras não me pareceque de
> qualquer forma por decreto lei (melhor ou pior que
> seja) se possaincidir muito num corpo social que faz
> crédito para comprar um carro caríssimomas que nunca
> irá ver as tuas peças- o problema é mais abrangente
> e parte daeducação, e daquela a que chamamos de
> “política cultural”. E mesmo que a nívelpolítico se
> produzisse aquela reforma que todos nós, tu, todos
> vocês maisgostavam de ter, para paz e sossego de
> todos e com direito a fazer família, sermedicados,
> ter boa reforma e morrer bem, a questão trágica do
> nada que acultura representa no tecido social actual
> ficava, e já nem havia artistas quese queixassem por
> isso! Acabamos de saber que o instituto do
> audiovisual negou apoio a Paulo Rocha e Fernando
> Lopes (estamos a falar em dois realizadores sem os
> quais o cinema português não existiria,
> provavelmente!), e basicamente porque os filmes
> deles não teriam público ou quase.  Formar esse
> público, educá-lo, quando é que o teremos como
> objectivo privilegiado? Mas isto é perigoso, a gente
> doa andares lá de cima sabe, os cá de baixo nem se
> puseram nunca o problema.... e nós, onde é que nós
> queremos morar? Eu fico aqui em baixo.
> 
> Nem em todos os tempos e todos lugares foi sempre
> assim, masde certeza que a trasversalidade da
> cultura nas classes sociais não melhorou, etalvez
> tenha piorado bastante, a demonstração de que o
> avanço tecnológico podenão implicar e muitas vezes
> não implica o crescimento cultural. Até porque
> estásempre ligado às leis do mercado. Sabes que foi
> inventado um carro quefuncionava com ar e punha em
> crise os monopólios do petróleo? Pois é: depois
> deser apresentado numa feira, desapareceu, como era
> de se esperar: mesmo um carropode ser marginalizado
> (aliás, morto) quando questiona um sistema social
> que seautoreproduz com uma tenacidade espantosa. Mas
> por favor, não sejas tu tambémtipicamente “TUGA” com
> a eterna dicotomia do Cá em Portugal/ Lá Fora. O
> “Láfora” não é assim tão compacto: há paises dentro
> dos a que atribuimos um papelcivilizacional
> fundamental para a modernidade em que oa artistas
> vivem emcondições análogas ou piores. Se queres
> falar do que acontece “lá fora”, melhorcomeçar por
> citar casos diferentes e descrever, também, o meio
> socio-cultural ehistórico em que uma eventual
> situação “melhor” se produz, porque disso estamosa
> falar e Portugal não vai deixar de ser Portugal, com
> o bem e o mal que isso significa.
> 
> E se quiseres ser um actor socialmente reconhecido,
> já sabesque há sítios para isto a partir dos
> morangos com açucar, mas não é isto quequeres, pois
> não?
> 
> O resto é continuar a fabricar fendas (esperemos que
> de luz), como Fontananas suas telas, enquanto o dia
> claro ainda fica apenas uma invenção do Almada.
> 
  Beijinhos
> 
> Manuel
Carta de Martim a Manuel:
Já que pões a conversa a público deixa-me responder-te
também publicamente às questões que fazes no email:
- A questão da relevância que esta operação possa ou
não ter, é como tudo...pode ou não ter de facto
relevância a um nível nacional mas não me interessa,
pois é como quando fazes um espectáculo sobre o amor
ou sobre a guerra ou outro tema qualquer: primeiro
pensas no espectáculo artisticamente e só depois te
preocupas com a visibilidade ou com o impacto que
possa ou não ter mas eu penso sempre que se conseguir
mudar 1 pessoa que seja já é gratificante ou se
conseguir fazer as pessoas falar mais deste ou daquele
assunto é uma vitória...Sempre acreditei que antes de
se mudar o que quer que seja de uma forma mais
evidente, é necessário falar-se sobre, discutir, e
para isso é fundamental criarem-se acções de debate,
neste caso opto por fazer um happening com a máscara
de um espectáculo porque é o que sei fazer...
- Não acho que para um artista ser artista tenha de
viver mal, ser marginalizado, a menos que esse seja o
seu programa artístico. Esse é mais um cliché que se
usa para caracterizar o artista...uma imagem, a meu
ver, ultrapassada, gasta e burguesa do próprio
conceito. O artista vive mal mas não é por
opção...Aqueles que vivem bem e têm carros bons
(exemplo que tu utilizas como sinónomo de ter um
estatuto que também a meu ver não é o mais adequado
neste caso) são aqueles que felizmente têm famíias
endinheiradas e que podem "dar-se ao luxo" de ocupar o
seu tempo com a arte, ou ser criadores. Ainda bem para
esses, mas há muitos que também têm objectivos
artisticos e não têm nada disso ou têm muito
pouco...Mas penso que a prioridade desta classe não é
ter um carro bom mas talvez ter dinheiro para comprar
livros ou dvds etc...embora um carro bom também dê
jeito para poder sair de vez em quando da tua cidade,
como ter dinheiro para poder viajar de x em quando
numa tentativa de abrir os horizontes, conhecer outras
realidades etc. O ter um estatuto permite qualquer
coisa mais do que não o ter...não torna a pessoa rica
e superficial, com ferraris e lamborguinis de um dia para o outro, acho eu! 
- Falo de médicos e advogados como exemplo. Também
posso nomear profissões como professores, bibliotecários e outros
funcionários públicos. Cito estas porque são as que
dão o melhor exemplo. Não vou citar o comerciante (não
sei se é isso o que tu entendes de "profissão comum")
porque esses estão ainda piores...ou não, depende da
perspectiva. Um comerciante sempre tem uma actividade
financeira regular a menos que faça mau negócio. Mas
parece-me que a arte está no campo das profissões que
não olham ao lucro, é uma actividade não-económica (portanto não produz riqueza como tu muito bem dizes!) mas é uma profissão formativa de cariz social. Presta um serviço
público, tenta melhorar a vida intelectual das
sociedades, e como sabes cada vez é mais abafada pelo
poder económico. Por essa razão deveria ainda ser mais subsidiada(é melhor nem falar da percentagem orçamental para a cultura no nosso país, esse é todo um outro departamento).
E não pretendo transformar (como dizes) a arte numa
profissão burguesa, pelo contrário, acho que ela já o é e se torna cada vez mais aburguesada no mau sentido quando só a classe endinheirada (prefiro chamar-lhe assim) a faz. Acho que o termo "burguesia" como tu o empregas é um pouco datado uma vez que hoje em dia todos somos já
burgueses excepto aqueles que dormem na rua ou em
condições muito dificeis. Se não és burguês na conta
bancária és sempre na tua mentalidade. A burguesia
instalou-se, globalizou-se no ocidente, não encontra
muitas excepções bem o sabes. Todos o querem ser,
todos o têm de ser senão passam ao lado da vida e da
história...Tu para ires ao Louvre tens de ser burguês,
e um artista que não tenha ido ao Louvre terá de fazer
alguns esforços para ir porque senão a referência
falha...arte sem referência hoje em dia é aquilo a que
se chama "naivité?" ou "arte naif". Então questiono:
porque há-de ir o advogado ao Louvre e não há-de ir o
artista?? 
A tua perspectiva romântica é bonita, aprecio-a mas não é aplicável infelizmente ao mundo de hoje. 
- Concordo com a questão da transversalidade que a
arte tem de propôr...Agora, não é o artista que tem de
ser transversal às classes mas sim a própria obra...A
obra é que tem de ser transversal ou não, o artista
apesar de tudo alimenta-se...é um ser biológico, tem
necessidades como todos, o seu talento infelizmente
não é divino. Por muito iluminado que seja o artista,
a sua arte não o protege da velhice e doença. 
E sim, quando questionas se o problema é maior,
digo-te logo que sim! Sim este não é o único
problema...há muitos outros a resolver inclusivé
o eterno problema da fome e da elevada taxa de seropositividade em África, o problema do aquecimento
global, o aumento do desemprego, o grave problema na
educação que Portugal enfrenta...etc, mas não posso
ter a pretensão de querer resolver tudo ou de falar sobre tudo...escolho aquilo que me diz mais respeito, um problema de entre muitos que deverá ter algum peso político, não sei se sabes mas o "estatuto do artista" é um assunto que cheira a mofo e que já anda a ser discutido desde os anos 70 em Portugal.
- Concordo contigo que o problema é mais abrangente, não começa aqui mas sim antes disto, ou seja, começa na educação. Como já referi antes, considero a educação um dos maiores problemas deste país e um dos pontos problemáticos é de não haver uma maior colaboração entre arte e educação. A sensibilização para as artes desde o início do ensino básico é fundamental, é aí que tudo começa...E hoje posso apostar que só não existe uma "política cultural" neste país, hoje, porque a maior parte de nós e dos nossos pais e avós não tiveram qualquer estímulo artístico desde o ensino primário. Eu tive mas sou uma excepção, como há por aí algumas, mas tive não por ser de famílias endinheiradas, mas porque fazia parte do programa de educação da minha mãe (talvez por ser simpatizante do regime comunista)..ela teve essa visão tão abençoada que estes políticos não tiveram e continuam a não ter...Portanto o problema começa, de facto, antes. Mas se não se resolvem, aos poucos, as pequenas "fendas", nada nunca se vai resolver. E para mim como para a maior parte dos trabalhadores do espectáculo, o não haver um estatuto do artista é uma grande e reveladora "fenda"! é fácil ficar no sofá a apontar e a dizer mal (um comportamento tipicamente TUGA como tu referes) mas quando se tem a iniciativa de querer fazer algo que melhore a situação, aí é sempre tudo mais dificil, e neste país ainda mais difícil é por causa do sol, do calor, das praias e do nevoeiro...e às vezes talvez do medo de nos chegarmos à frente!! 
-E para acabar, relativamente ao estar por cima ou estar por baixo: Sempre gostei mais de ficar por cima, mas há quem goste, como tu, de ficar por baixo, e respeito os gostos de cada um, se preferes ser papado e drenado para o subsolo, vai em frente, ou melhor para baixo! Para baixo é que é caminho...
- Quanto àquela história de ser reconhecido ou famoso, não percebo essa provocação. Acho que é completamente despropositada para o assunto. Um estatuto não te dá reconhecimento nem fama, dá-te condições mínimas de trabalho...isso da fama e do reconhecimento depende da natureza do trabalho que aceitas fazer dentro da tua área. Hoje posso fazer os Morangos e amanhã estar a criar teatro conceptual. Depende dos gostos, das oportunidades e objectivos de cada um.
- Também gosto do Almada mas esse era do modernismo, era dos antigos, daqueles que ainda não sofriam com o entupimento global, com o excesso de informação e com o capitalismo...ainda se falava do progresso e a "high-technology" era ainda uma criança!
Um abraço 
martim
P.S. Vou usar parte dos nossos emails no "Um Espectáculo de Merda" , o que achas?
;)